Ao folhear este conjunto de fotografias de joãozero, reunidas sob o título TWO POINT ZERO, ocorreu-me de imediato a leitura que Alberto Caeiro fez de Cesário Verde, num dos mais conhecidos excertos de O Guardador de Rebanhos — uma leitura que, de certa forma, fixou o modo como ainda hoje interpretamos o poeta do século XIX. Caeiro, ao ler até “lhe arderem os olhos/o livro de Cesário Verde”, reconhece no poeta uma tristeza profunda, nunca plenamente dita, mas visível no modo como “andava na cidade como quem anda no campo”. Cesário, para Caeiro, era um camponês preso em liberdade pela cidade — que nos oferecia um olhar bucólico sobre o mundo urbano, como quem observa ruas e edifícios com o mesmo espanto com que se contempla árvores.
É esse olhar — simultaneamente distanciado e envolvido — que parece atravessar as fotografias de joãozero. Retratos urbanos, marcados por uma continuidade formal — desde logo o preto e branco — e por uma constância temática que revela uma melancolia subtil, uma contemplação silenciosa da cidade. Não sei se joãozero fotografa cidades como quem olha para árvores, mas há na sua perspetiva uma clara recusa da participação direta na realidade captada. O fotógrafo posiciona-se fora do quadro, como quem observa sem intervir, como quem regista sem perturbar. E essa distância, essa exterioridade, engrandece o que é retratado: com tempo de exposição e minúcia, a cidade torna-se monumental, quase sagrada.
Outro elemento de continuidade nestes trabalhos é a presença humana — discreta, fugidia, por vezes apenas sugerida. Em todas as fotografias há um detalhe que remete para o humano: uma silhueta, uma sombra, um vestígio. Nunca rostos, nunca protagonismo. Apenas marcas de escala e calor, que redimensionam a arquitetura e nos colocam, enquanto observadores, dentro da imagem. São manchas de humanidade que contrariam o cinzento do real, que introduzem uma esperança silenciosa, uma possibilidade de pertença.
Há, neste olhar, um fascínio dúplice pela cidade: por um lado, o entusiasmo com a monumentalidade construída pelo homem — uma arquitetura que, mesmo quando não planeada, revela uma ordem própria; por outro, um apelo a um tempo anterior, marcado por uma escala mais humana, por uma relação mais íntima com o espaço. É esse contraste — entre modernidade e bucolismo, entre presença e ausência — que confere densidade às imagens de joãozero.
O óbvio interesse que joãozero revela pela arquitetura urbana, seja esta mais ou menos planeada, não resulta de uma perspetiva fria, incentivada por um encantamento com o labor rigoroso do homem moderno. Pelo contrário, o que estas fotografias demonstram é que podemos continuar a olhar para a cidade com os olhos de quem perscruta na presença humana um ponto de fuga esperançoso, materializado no céu que se vislumbra invariavelmente – seja no fim de uma escadaria, ao fundo de um túnel ou no cruzamento de dois edifícios.
No seu ensaio sobre fotografia, A Câmara Clara, Roland Barthes sublinhava que a fotografia tem uma capacidade única para lidar com a ausência, com o tempo e com a morte. Para Barthes, uma fotografia não é apenas representação: é vestígio, é experiência emocional, é prova de que algo foi. Talvez seja essa a melhor forma de descrever estas imagens: representações da realidade urbana dos nossos tempos, marcadas por detalhes humanos que nos tocam pessoalmente. Fotografias que não apenas mostram, mas interpelam. Que não apenas registam, mas interrogam. Um olhar sobre a cidade com a melancolia de quem ainda acredita que, mesmo nas cidades, o tempo continua a ser, apesar de tudo, o tempo dos homens.
Pedro Adão e Silva